segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Uma história confusa




"Te vi por trás das rosas e havia nos teus olhos uma ânsia muda. Algo assim como se quisesse falar comigo. Juro que na saída tentei me aproximar, mas tive medo. Sei que ainda vamos ser amigos. Não quero forçar nada. Hoje é domingo pouco antes do almoço. A casa está vazia. Eu gostaria de ter escrito logo depois daquela noite. É incrível, mas há duas décadas, nesse mesmo dia da semana, nessa mesma hora, eu estava nascendo.

(...)

Chegue bem perto de mim. Me olhe, me toque, me diga qualquer coisa. Ou não diga nada, mas chegue mais perto. Não seja idiota, não deixe isso se perder, virar poeira, virar nada. Daqui a pouco você vai crescer e achar tudo isso ridículo. Antes que tudo se perca, enquanto ainda posso dizer sim, por favor, chegue mais perto."

Caio Fernando Abreu

domingo, 23 de agosto de 2009

À beira do mar aberto


E te imagino então parado sozinho sobre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos com os dedos roxos de frio enfiados até o fundo dos bolsos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que me olha agora, raramente. Teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume. Teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber o que me revolve agora, quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga, de onde às vezes costumas afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora. Mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu, é que te olho detalhado. E nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspa quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pelos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa do mar, das velhas tias, das iniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando suponho, que é teu jeito de dar-se a mim...

Caio Fernando Abreu

sábado, 22 de agosto de 2009

Anotações de um amor urbano


Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada. Não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você. Faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação impressão ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e, com a ponta dos meus dedos, tocar você, natural que seja assim: o toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.

(...)

Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em você. Sei por que sacudi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei o digital no meio da avenida.

(...)

Não temos culpa. Tentei. Tentamos.

Caio Fernando Abreu