sexta-feira, 24 de abril de 2009

Mensagem à poesia




Não posso.
Não é possível.
Digam-lhe que é totalmente impossível.
Agora não pode ser, é impossível.
Não posso.

Digam-lhe que estou tristíssimo, mas que não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar, muitas de cidades a reerger, muita pobreza pelo mundo. Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo e as mulheres estão ficando loucas e há legiões delas carpindo a saudade de seus homens. Contem-lhe que há um vácuo nos olhos dos párias e sua magreza é extrema. Contem-lhe que a vergonha, a densonra, o suicídio rondam os lares e é preciso reconquistar a vida.
Façam-lhe ver que eu preciso estar alerta, voltado para todos os caminhos, pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Poderem-me com cuidado, não a magoem, que se não vou, não é porque não quero, ela sabe. É porque há um herói num cárcere, há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa praça.
Contem-lhe bem em segredo que eu devo estar prestes, que meus ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem deixar de intimidar. Que eu levo nas costas a desgraça dos homens e não é o momento de parar, agora.
Digam-lhe que no entanto, sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento aos homens perplexos. Digam-lhe que me foi dada a terrível participação e que possivelmente deverei enganar, fingir, falar com palavra alheias, porque sei que é longínqua a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh!, procurem convencê-la desse invencível dever que é o me, mas digam-lhe que no fundo, tudo que estou dando é dela e que me dói ter de despojá-la assim, nesse poema. Que por outro lado, não devo usá-la em seu mistério, a hora é de esclarecimento; nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado há fome e mentira e um pranto de criança sozinha numa estrada, junto a um cadáver de mãe.
Digam-lhe que há um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem arrependido. Digam-lhe que há uma casa vazia com um relógio batendo horas. Digam-lhe que há um grande aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações, há fantasmas que me visitam de noite e que me cumprem receber.
Contem a ela da minha certeza do amanhã, que sinto um sorriso no rosto invisível da noite, vivo em tensão, ante a expectativa do milagre. Por isso peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora com a sua voz de sombra, que não me faça sentir covarde, ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável solidão.
Peçam-lhe, oh!, peçam-lhe que se cale por um momento, que não me chame, porque não posso ir. Não posso ir. Não posso.

Mas não a traí.
Em meu coração vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa envergonhá-la. A minha ausência é também um sortilégio do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la num mundo em paz. Minha paixão de homem resta comigo, minha solidão resta comigo, minha loucura resta comigo.
Talvez eu deva morrer sem vê-la mais, sem sentir mais o gosto de suas lágrimas, olhá-la correr livre e nua nas praias e nos céus e nas ruas da minha insônia.
Digam-lhe que é esse o meu martírio, que às vezes pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas forças da tragédia abastecem-se sobre mim e me impelem para a treva. Mas que eu devo resistir, que é preciso. Mas que a amo com toda a pureza de minha passada adolescência, com toda a violência das antigas horas de contemplação extática, num amor cheio de renúncia.
Oh!, peçam a ela que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo, a quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante, a quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa, por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho. A quem foi dado se perder de amor pelo direito de todos terem uma pequena casa, um jardim de frente e uma menininha de vermelho.
E se perdendo, ser-lhe doce, perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível.
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame, que me espere, porque sou seu, apenas seu.
Mas que agora é mais forte do que eu, não posso ir.
Não é possível.
Me é totalmente impossível.
Não pode ser não.
É impossível.
Não posso.

Vinícius de Moraes

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